a grande porra das perspectivas é que elas são todas válidas e
passamos a vida a querer que a nossa seja mais válida do que a do
vizinho do lado.
e quando temos a mania de que esse assunto não é
connosco, que não senhor, que respeitamos tanto as opiniões dos outros,
damos por nós a avaliar o mundo e a botar larachas sobre como os outros
devem viver, como devem ser bonzinhos ou mauzinhos perante determinada
circunstância, sobre como deveriam agir assim e não assado. enfim, como
se o nosso mundinho também não estivesse coberto de telhados de vidro
para o qual toda a gente espreita quando quer. pior. somos nós que
estamos lá dentro e o que os outros vêm, apenas vêm de cima. pelo raio
do telhado.
senão, vejamos.
vais na rua e encontras uma nota de 500 no chão.
o fulano A pára diante da nota, baixa-se e apanha-a com toda a rapidez, enfia-a no bolso e segue caminho.
o
fulano B passa por cima da nota, hesita, olha em redor e pensa no que
pensarão se o virem apanhar a nota e segue apressado como se não tivesse
visto nada.
o fulano C pára, pega na nota e vai entregá-la à
polícia, contando que a achou e que deve fazer muita falta a quem a
perdeu. a ver se se encontra o devido dono.
o fulano D pára, pega na nota e entra na loja mais próxima e gasta tudo o que pode no que sempre quis ter.
o fulano E.
existem
mil e uma possibilidades para o que se pode fazer com uma nota de 500 e
todas elas são válidas, porque todas elas são vividas por quem passou
pela situação de encontrar uma nota de 500 no chão.
então,
por que raio se passa uma vida inteira a declarar que o nosso mundo é
melhor do que o dos outros, que a música que ouvimos é que deve
aniquilar todas as outras, que devem tirar-nos a radiografia consoante
escolhemos estaline ou balzac, que a casa que moramos e o nosso bairro é
que são a escolha perfeita, que o nosso modelo de família, trabalho e
lazer e que a maneira como comemos ou amamos é aquela a que o resto do
mundo, os outros portanto, devem apirar a ser e ter?
e
chega-se a esta altura do ano e todos partilham as mesmas mensagens, os
mesmos pensamentos, fartam-se de trocar mimos e eu pergunto-me o que
andam a fazer o ano inteiro? onde fica durante os restantes 364 dias o
amor pelos amigos, pela família, pelos animais, por tudo o que mexa e a
quem se deseja tudo lindo e brilhante apenas neste dia? é quando um
amigo precisa que não lhe podemos voltar as costas, e não só na noite de
natal. é quando um pai, uma filha, uma avó ou uma irmã partilham
momentos únicos de alegria, conforto, presença apenas ou amor sincero
que se sabe quem estará sempre connosco, e não só neste dia.
mas, claro está, a verdade do que se escreve ou pensa, apenas depende de quem a escreveu ou pensou.
tudo
na vida é uma arte de sedução e pequenos interesses. entre amizades
existe sempre uma troca, por mais que se jure a pés juntos que não. é-se
amigo porque o outro o é também, nunca vi ninguém ser amigo sozinho.
nas relações, o outro deixou de interessar e a troca perdeu o sentido.
no trabalho, presta-se um serviço e recebe-se por ele. preto no branco.
mas
na família nasce-se e brota-se ali, no seio daquelas pessoas que nos
quiseram muito. e são elas que nos seguem, nos acompanham, para a vida. e
ali reside também uma energia muito própria de fluidez, de
reciprocidade, mas que segue uma linha de não interesse. é uma coisa de
sangue. não se escolhe. é-se. tão próxima que a nota de 500 teria
destino evidente no bolso de um pai, de uma irmã ou de uma avó enraizada
e crente na força da família. sabendo de algum dos seus mais
necessitado.
persiste um encantamento que dura por histórias e
vidas inteiras. segredos e lendas que nunca se soube bem com que linhas
se escreveram ao longo dos tempos. o avô que tinha pomares. a tia dos
olhos verdes. a adolescência da mãe ou a migração árdua de um pai. a
proximidade é fácil. e isso leva ao encanto permanente, sejam muito ou
poucos. seja um ou nada.
e nunca por nada deste mundo e do outro, tomar nada nem ninguém como garantido.
seja uma nota de 500, que hoje nos enche o bolso mas que amanhã a perdemos pelo chão.
sejam ervas daninhas arrancadas (ontem ainda lá estavam viçosas) ou a necessidade absurda de justificar a quem se faz o bem e porquê (quando ontem lhe fizemos tanto mal).
e só por isso encontrei uma
porra de um texto num dos livros que ofereci a alguém muito próximo e
que deixo aqui para lerem e, claro está, terem a vossa opinião. porque
ela é tão válida quanto a de quem está a ler esta mensagem e a julgar já
de antemão a porcaria que «ela» decidiu deixar aqui hoje para quem não
tem mais nada de interessante para fazer senão pensar na lato senso da
justiça e na altivez dos moralismos exacerbados.
«Para
uma família ser feliz, é necessário haver sedução. Os filhos têm de ser
charmosos para encantar os pais, os pais têm de se esforçar para
educarem convincentemente os filhos. E marido e mulher, caso queiram
permanecer juntos, têm de passar a vida inteira a engatar-se.
O mal da
família é a facilidade. É pensar que aquele amor já é assunto arrumado.»
Último Volume
Miguel Esteves Cardoso
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