quinta-feira, 22 de setembro de 2011

daquele cinema


comprei um bilhete e um cartucho de amendoins e entrei no cinema. tu compraste um bilhete e um cartucho de amendoins e entraste no cinema. sentámo-nos na mesma fila, lado a lado. eu abri o meu cartucho de amendoins, tu abriste o teu cartucho de amendoins, com um ruído exactamente igual ao meu. voltei-me para ti e mostrei os dentes. tu voltaste-te para mim e mostraste os dentes. quando a luz apagou, tu pousaste o teu cartucho de amendoins no colo e eu pousei o meu cartucho de amendoins no colo. com a mão direita comecei a levantar-te a saia. para me facilitar a tarefa, tu levantaste levemente as nádegas do assento. com esse gesto, caiu-te do colo o cartucho de amendoins. assim que os amendoins acabaram de se espalhar no chão, abaixei-me para tos apanhar, mas esqueci-me do meu cartucho de amendoins, o qual me caiu igualmente ao chão. gastei um tempo enorme a procurar e a recolher todos os amendoins. lembro-me de que passei o tempo quase todo até ao intervalo recolhendo amendoins. todo o tempo tu não deixaste de suspirar e de gemer, embora estivesse apenas a decorrer um documentário sobre o narciso e nenhum drama comovente. a voz do locutor lembro-me que dizia: «no começo da primavera, quando montes e vales acordam do longo sono de inverno, centenas e centenas de narcisos elevam as douradas cabeças em todas as frestas e abrigos do solo, e lançam seu olhar inocente pelos portentosos rochedos e pelas raízes nodosas da floresta.» isto, como certamente te lembras, foi antes do intervalo. depois, quantas vezes, oh quantas vezes não deixaste cair e eu não deixei cair os amendoins que nos restavam. e ora eu, ora tu, de cada vez descíamos a procurá-los, e a colhê-los com suaves, ternos guinchos. o filme, no dizer da crítica, era daqueles que se não podem perder.



alberto pimenta, a evocação do chimpanzé

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