segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

da persistência. assim vai.

a grande porra das perspectivas é que elas são todas válidas e passamos a vida a querer que a nossa seja mais válida do que a do vizinho do lado.
e quando temos a mania de que esse assunto não é connosco, que não senhor, que respeitamos tanto as opiniões dos outros, damos por nós a avaliar o mundo e a botar larachas sobre como os outros devem viver, como devem ser bonzinhos ou mauzinhos perante determinada circunstância, sobre como deveriam agir assim e não assado. enfim, como se o nosso mundinho também não estivesse coberto de telhados de vidro para o qual toda a gente espreita quando quer. pior. somos nós que estamos lá dentro e o que os outros vêm, apenas vêm de cima. pelo raio do telhado.
senão, vejamos.
vais na rua e encontras uma nota de 500 no chão.
o fulano A pára diante da nota, baixa-se e apanha-a com toda a rapidez, enfia-a no bolso e segue caminho.
o fulano B passa por cima da nota, hesita, olha em redor e pensa no que pensarão se o virem apanhar a nota e segue apressado como se não tivesse visto nada.
o fulano C pára, pega na nota e vai entregá-la à polícia, contando que a achou e que deve fazer muita falta a quem a perdeu. a ver se se encontra o devido dono.
o fulano D pára, pega na nota e entra na loja mais próxima e gasta tudo o que pode no que sempre quis ter.
o fulano E.
existem mil e uma possibilidades para o que se pode fazer com uma nota de 500 e todas elas são válidas, porque todas elas são vividas por quem passou pela situação de encontrar uma nota de 500 no chão.

então, por que raio se passa uma vida inteira a declarar que o nosso mundo é melhor do que o dos outros, que a música que ouvimos é que deve aniquilar todas as outras, que devem tirar-nos a radiografia consoante escolhemos estaline ou balzac, que a casa que moramos e o nosso bairro é que são a escolha perfeita, que o nosso modelo de família, trabalho e lazer e que a maneira como comemos ou amamos é aquela a que o resto do mundo, os outros portanto, devem apirar a ser e ter?

e chega-se a esta altura do ano e todos partilham as mesmas mensagens, os mesmos pensamentos, fartam-se de trocar mimos e eu pergunto-me o que andam a fazer o ano inteiro? onde fica durante os restantes 364 dias o amor pelos amigos, pela família, pelos animais, por tudo o que mexa e a quem se deseja tudo lindo e brilhante apenas neste dia? é quando um amigo precisa que não lhe podemos voltar as costas, e não só na noite de natal. é quando um pai, uma filha, uma avó ou uma irmã partilham momentos únicos de alegria, conforto, presença apenas ou amor sincero que se sabe quem estará sempre connosco, e não só neste dia.
mas, claro está, a verdade do que se escreve ou pensa, apenas depende de quem a escreveu ou pensou.
tudo na vida é uma arte de sedução e pequenos interesses. entre amizades existe sempre uma troca, por mais que se jure a pés juntos que não. é-se amigo porque o outro o é também, nunca vi ninguém ser amigo sozinho. nas relações, o outro deixou de interessar e a troca perdeu o sentido. no trabalho, presta-se um serviço e recebe-se por ele. preto no branco.
mas na família nasce-se e brota-se ali, no seio daquelas pessoas que nos quiseram muito. e são elas que nos seguem, nos acompanham, para a vida. e ali reside também uma energia muito própria de fluidez, de reciprocidade, mas que segue uma linha de não interesse. é uma coisa de sangue. não se escolhe. é-se. tão próxima que a nota de 500 teria destino evidente no bolso de um pai, de uma irmã ou de uma avó enraizada e crente na força da família. sabendo de algum dos seus mais necessitado.
persiste um encantamento que dura por histórias e vidas inteiras. segredos e lendas que nunca se soube bem com que linhas se escreveram ao longo dos tempos. o avô que tinha pomares. a tia dos olhos verdes. a adolescência da mãe ou a migração árdua de um pai. a proximidade é fácil. e isso leva ao encanto permanente, sejam muito ou poucos. seja um ou nada.
e nunca por nada deste mundo e do outro, tomar nada nem ninguém como garantido.
seja uma nota de 500, que hoje nos enche o bolso mas que amanhã a perdemos pelo chão.
sejam ervas daninhas arrancadas (ontem ainda lá estavam viçosas) ou a necessidade absurda de justificar a quem se faz o bem e porquê (quando ontem lhe fizemos tanto mal).

e só por isso encontrei uma porra de um texto num dos livros que ofereci a alguém muito próximo e que deixo aqui para lerem e, claro está, terem a vossa opinião. porque ela é tão válida quanto a de quem está a ler esta mensagem e a julgar já de antemão a porcaria que «ela» decidiu deixar aqui hoje para quem não tem mais nada de interessante para fazer senão pensar na lato senso da justiça e na altivez dos moralismos exacerbados.

«Para uma família ser feliz, é necessário haver sedução. Os filhos têm de ser charmosos para encantar os pais, os pais têm de se esforçar para educarem convincentemente os filhos. E marido e mulher, caso queiram permanecer juntos, têm de passar a vida inteira a engatar-se. 
O mal da família é a facilidade. É pensar que aquele amor já é assunto arrumado.»

Último Volume
Miguel Esteves Cardoso

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