quinta-feira, 30 de junho de 2011

à tarde



é um tal silêncio que se ouve o sangue correr nas veias.
sossega-se e cala-se tudo.

e é muito estranho que não se ouça nada nem ninguém.
depois de tanto ruído. de dias e noites inteiras a ressoar aos ouvidos.
agora apenas corpo e água e sono.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

e houve uma noite em que a canon caiu no molho da francesinha



Então, eu comia o Porto. Ali à beira do Douro, abria a boca e enchia-a com o Porto. Pousava-o sobre a língua e mastigava-o com cuidado, para não causar estragos na Torre dos Clérigos, no Pavilhão Rosa Mota ou na estátua do leão e da águia da Boavista. Os portuenses haviam de acreditar que o céu da minha boca era um dia de outono nublado e continuariam a fazer a sua vida normal, voltariam para casa à hora certa do relógio de pulso e os autocarros continuariam a subir e a descer os Aliados sem perturbação. O momento de engolir o Porto seria sereno para a cidade e, para mim, seria o instante em que a memória do seu gosto se tornaria efectiva. O Porto não saberia a molho de francesinha, muito menos a tripas ou a vinho doce, teria um gosto composto por múltiplo, intenso e contraditório, composto por perífrase, hipérbole e oximoro. Eu fechava os olhos, claro, para sentir analiticamente o gosto do Porto. Passava bastante tempo assim, o silêncio tinha vagar para rodear-me.


josé luís peixoto

terça-feira, 28 de junho de 2011

só para que saibam

a melhor faixa do novo dos bon iver chama-se Lisbon, OH :)

ora experimentem o repeat umas 20 vezes antes de dormir.

to fade away...




ukulele songs, eddie vedder, 2011

enredo


foto: fabrice pinto

a paixão é, de facto, passiva; na paixão há um domínio do amado sobre o amante. ter a paixão da física significa que somos inferiores à física. ter o amor da física significa que somos nós a criar a física. apaixona-se o fraco, o forte cria. quando se ama, inventa-se inteiro o objecto amado, e daí o espanto de muitas das mulheres que homens grandes amaram; porque me escolheu ele, porque reparou em mim, porque me quis tanto?


agostinho da silva, sete cartas a um jovem filósofo


segunda-feira, 27 de junho de 2011

arde


foto: fânia santos

Pela última vez, durmo na casa do Alto. É uma noite sem lua mas com um céu vivo de estrelas. Mas a minha atenção prende-se à cidade, à planície. Para os lados da estrada de Viana descubro um espectáculo extraordinário que me alvoroça, que me fascina: numa vasta extensão de terreno, um incêndio lavra interminavelmente, iluminando a noite. É uma "queimada", suponho, o incêndio do restolho para a renovação da terra. Alinhadas pelos sulcos, as chamas avançam como um flagelo inexorável. E aos meus olhos saqueados é como se uma cidade ardesse, uma cidade fantástica, aberta de quarteirões, de praças, de sonhos. Cidade, minha cidade... Que a terra tenha razão sobre ti, que essa força que mal sei te absorva, te revele em cinzas, tire delas outra fecundação e outro ignorado recomeço - que me importa? A minha vida é "a" vida, só existe o que sou: não se imagina quem se não é..
Acendo um cigarro, fico-me a olhar o incêndio.

Lembra-me imagens da guerra, de cidades bombardeadas. Alguém deve ir pegando o fogo por sectores, estabelecendo linhas de chamas que o vento vai impelindo. O campo arde vastamente, como uma destruição universal. Quase ouço o crepitar das chamas como o fervor final de uma inundação. Sinto-me só e nu, escapando ao desastre. Mas esta nudez que eu algum dia julguei possivelmente coberta pela compreensão dos outros, esta redução extrema às minhas raízes, esta solidão inicial de quem não pode esquecer a sua pobre condição é o sinal humilde e amigo de que à vida que me deram a não repudiei, de que cuidei dela, a não perdi, a levo comigo nesta viagem breve, a aceito ao meu olhar de fraternidade e perdão... A noite avança, a minha cidade arde sempre. Vou fundar outra noutro lado. Mas não sabia eu que ela devia arder? Acaso será possível construir uma cidade como a imagino, a cidade do Homem? Acaso não dura ela em mim, no meu sonho, apenas porque a penso sem consequências, a imagino, a não vivo, lhe não exijo responsabilidades? Não o sei, não o sei...

Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino, achar o seu lugar na verdade da vida, da terra, dos astros, o que sei é que a morte não deve ter razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-la contra os homens, o que sei é que esta evidência inicial nos espera no fim de todas as conquistas para que o ciclo se feche - o ciclo, a viagem mais perfeita.


vergílio ferreira, aparição


passavento

foto: fabrice pinto

o viajante está feliz. nunca na vida teve tão pouca pressa. senta-se na beira de um destes túmulos, afaga com as pontas dos dedos a superfície da água, tão fria e tão viva, e, por um momento, acredita que vai decifrar todos os segredos do mundo. é uma ilusão que o assalta de longe em longe, não lho levem a mal.

josé saramago, viagem a Portugal


domingo, 26 de junho de 2011

pensava



todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.


josé saramago, levantado do chão


a teus pés



para sempre, Lisboa

sexta-feira, 17 de junho de 2011


When they call your name
Will you walk right up
With a smile on your face
Or will you cower in fear
In your favorite sweater
With an old love letter

I wish you would
I wish you would
Come pick me up
Take me out
Fuck me up
Steal my records
Screw all my friends
They're all full of shit
With a smile on your face
And then do it again
I wish you would

When you're walking downtown
Do you wish I was there
Do you wish it was me
With the windows clear and the mannequins eyes
Do they all look like mine

You know you could
I wish you would
Come pick me up
Take me out
Fuck me up
Steal my records
Screw all my friends behind my back
With a smile on your face
And then do it again
I wish you would

I wish you'd make up my bed So I could make up my mind Try it for sleeping instead Maybe you'll rest sometime

ryan adams

quarta-feira, 15 de junho de 2011

«somos demasiada força»


De manhã, que medo, que me achasses feia!
Acordei, tremendo, deitada n'areia
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.

Vi depois, numa rocha, uma cruz,
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:

São loucas! São loucas!

Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
Me diz qu'estás sempre comigo

No vento que lança areia nos vidros;
Na água que canta, no fogo mortiço;
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo.


david mourão-ferreira, para amália rodrigues

alan, o cabeleireiro filósofo que corta cabelos em noite de eclipse e jura que o presságio é de que

«para sempre só as pedras. menina, nada é para sempre.
aquilo que alguém está a ser agora, já tu foste um dia. vai chegar a vez de todos.
excepto das pedras.»

terça-feira, 14 de junho de 2011

em casa há milagres



daqueles que vêem iluminar-se o rosto de pessoas de vidas duras. no bairro percebe-se a alegria de dentro.
vive-se os santos. o alarido. a berraria.
vimos tudo da janela.
descemos, corremos, abraçámos a noite e percebemos o momento.
dissemos-lhes adeus a perder de vista.
não existe mais nada além dele. os que persistem. vivem eternamente. sobrevivem do alto. de tudo. da imensidão que nos assiste.
levo esta gente comigo. levo-nos comigo.

intencional mente


realmente, se um dia de facto se descobrisse uma fórmula para todos os nossos desejos e caprichos - isto é, uma explicação do que é que eles dependem, por que leis se regem, como se desenvolvem, a que é que eles ambicionam num caso e noutro e por aí fora, isto é uma fórmula matemática exacta - então, muito provavelmente, o homem deixaria imediatamente de sentir desejo.
pois quem aceitaria escolher por regras? além disso, o ser humano seria imediatamente transformado numa peça de um orgão ou algo do género; o que é um homem sem desejos, sem liberdade de desejo e de escolha, senão uma peça num orgão?

Fiodor Dostoievski, in "Cadernos do Subterrâneo"

inteligência, vulgo ruína

e depois há os que se acham polidos, donos da verdade. correctos. limpos.
mais bonitos.
e mentem. como todos os outros. e acham que ninguém vê. que ninguém percebe.
que andamos a ver os seus actos exemplares incólumes.

jogadores de palavras.
juras de amor eterno que batem a persiana de um outro alguém quando a noite vai alta.
amizades fingidas à lei do maior protagonista.
sorrisos, pensares que se perdem na fanfarronice da auto-promoção.
singelos chegares de ouvidos a orelhas mocas que decidem não ouvir. mais nada.


os erros e as dúvidas da inteligência desaparecem mais depressa, sem deixar rasto, que os erros do coração; desaparecem não tanto em consequência de discussões e polémicas como graças à lógica iniludível dos acontecimentos da vida viva, que às vezes trazem consigo o verdadeiro escape e mostram o caminho adequado, senão logo, na primeira altura, num prazo relativamente breve, em certas ocasiões, sem haver necessidade de se esperar pela geração seguinte. com os erros do coração o mesmo não sucede. o erro do coração é de maior monta; significa que o espírito frequentemente, o espírito de toda a nação, está doente, sofre de qualquer contágio e não poucas vezes essa enfermidade, esse contacto, implicam tal grau de cegueira, que toda a nação se torna incurável... por mais tentativas que se façam para a salvar. pelo contrário, essa cegueira desfigura os factos a seu talante, deforma-os segundo as delirantes visões do espírito doente e até pode suceder que toda a nação prefira ir para a ruína conscientemente, quer dizer, conhecendo já a sua cegueira, a deixar-se curar... pois já não quer que a curem.

Fiodor Dostoievski, in "Diário de um Escritor"



andar

«Despedira-me de todos e já estava possuído pela habitual alegria de me pôr a caminho, a sensação de alívio sempre nova que me inunda por saber que ninguém poderá alcançar-me, que não tenho marcações feitas nem me esperam em lado nenhum, que não tenho compromissos a não ser os que o acaso possa originar. Adoro misturar-me assim com a multidão, tornar-me um viajante qualquer, liberto do meu papel, da imagem que temos de nós próprios e que por vezes é uma gaiola tão apertada como a do corpo; com a certeza de não dar de caras com alguém com quem tenha a obrigação de conversar e com a liberdade de mandar para o diabo o primeiro que tente fazê-lo.»


Tiziano Terzani, Disse-me um Adivinho

tradução de Margarida Periquito
© Tinta da China

quinta-feira, 9 de junho de 2011


foto: fabrice pinto

no sooner met, but they looked;

no sooner looked but they loved;
no sooner loved but they sighed;
no sooner sighed but they asked one another the reason;
no sooner knew the reason but they sought the remedy.

as you like it, william shakespeare

os limites

as fronteiras entre o que nos parece aceitável e sobre-humano existem.
e sempre que as tentamos enganar, caímos na verdade inabalável do impossível.

ou do reconhecer desses próprios limites como uma forma de protecção, uma muralha que nos vai proteger do abismo. porque não aguentamos tudo. um dispositivo de alarme que nos projecta para as decisões que só nós podemos tomar. as escolhas. porque a vida não espera e encarrega-se de cuidar do que não temos nas nossas próprias mãos.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

i might be wrong


foto: paulo urbano


I might be wrong
I might be wrong I could have sworn I saw a light coming on I used to think I used to think There is no future left at all I used to think Open up, begin again Let's go down the waterfall Think about the good times And never look back Never look back What would I do? What would I do? If I did not have you? Open up, let me in Let's go down the waterfall Have ourselves a good time It's nothing at all Nothing at all Nothing at all

«your secret dies with me»

there's something about barcelona

terça-feira, 7 de junho de 2011

«nothing now can ever be taken away from me»



obrigada!!!!!!!!!!

sibyl vane



«I hope that Dorian Gray will make this woman his wife, passionately adore her for six months, and then suddenly become fascinated by someone else.
He would be a wonderful study.»

o verão do nosso contentamento


«I’ll follow you and make a heaven out of hell,
and I’ll die by your hand which I love so well.»

Fourth. A Midsummer Night’s Dream

Act 12. Shakespeare.

«our best yesterdays are now foul piles of crumpled names»


foto: ricardo cardoso

E como a alma é aquilo que não aparece,
A alma mais perfeita é aquela que não apareça nunca -
A alma que está feita com o corpo
O absoluto corpo das coisas,
A existência absolutamente real sem sombras nem erros
A coincidência exacta (e inteira) de uma coisa consigo mesma.

alberto caeiro

segunda-feira, 6 de junho de 2011

vê-se




- Cutting off her nipples with garden shears! You call that normal?
- Well, the doctors say she's neurotic.


reflexions in a golden eye, john huston, 1967

lê-se

ouve-se

legislar

quando se pensa que mudar de cidade é suficiente.
após a vitória da direita nestas eleições, mudar de país é já uma certeza.

belmonte, ulisses, penélope e magdalena a não ser odisseia


foto: fabrice pinto

overcome by your moving temple
overcome by this holiest of altars
so pure, so rare
to witness such a lovely goddess

i lost my self control
beyond compelled to throw this dollar down
before your holiest of altars

i'll sell my soul, my self esteem
a dollar at a time for one chance, one kiss
one taste of you my magdalena

i've beared witness to this place, this lair, so long forgotten
so pure, so rare, to witness such a lovely goddess

and i'd sell my soul, my self-esteem
a dollar at a time for one chance, one kiss,
one taste of you my black madonna


i'll sell my soul, my self-esteem
a dollar at a time

for one taste, one taste
one taste of you my...


apc

domingo, 5 de junho de 2011

enquanto dorme, o ombro dormente


foto: fabrice pinto

- Love doesn't end, just because we don't see each other.
- Doesn't it?
- People go on loving God, don't they? All their lives. Without seeing him.
- That's not my kind of love.

- Maybe there is no other kind.


sexta-feira, 3 de junho de 2011

ulysses syndrome



The Ulysses Syndrome, a sonic voyage into our own abysses, speaks to those with never ending quests, to the nomads
of the spirit and to those who haven't capitulated in front of the horrific advance of banality and superficiality.

nicolas jaar @ lux



foto: pascal montary


dançamos.
a vibração fica. esmaga.
risos. parte-se o peito em dois.
uma parte que fica. a outra que se desfaz.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

o tempo


foto: fabrice pinto

Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

eugénio de andrade

«mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia»


the tree of life, terrence malick, 2011

quarta-feira, 1 de junho de 2011

serralves e eram 3


foto: ricardo cardoso

horas da manhã.
ninguém arreda pé e na entrada as gentes entram aos magotes.
montes, parecem grupos de formigas.
nem brisa, nem chuva nem golpe de nortada.
não se pensa no ontem nem no amanhã.

é um prenúncio de morte.
destruir. recriar. dançar. rir. caminhar. encher de sentido os pensamentos.


...
and you will try to do what you did before
pull the wool over your eyes
for a week or more
let your family take you back to your original mind

there's nothing i can do
there's nothing i can do
there's nothing i can say
there's nothing i can say
i can say


ilusionismo

aperfeiçoar a arte de desaparecer.

o essencial é invisivel aos olhos


foto: fabrice pinto

tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativas.