sábado, 19 de janeiro de 2013

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fiquei a pensar (...) no que é essa necessidade de parar para a qual a vida, num momento ou noutro, nos encaminha; nos fins que nos temos de impor se quisermos crescer, mesmo quando os ventos correm de feição; na urgência fundamental que representa escutar-se a si mesmo, perfurando camadas de distração e automatismo.

diria isto: por vezes o que nos aproxima da autenticidade é o continuar, por vezes é parar.

e só o saberemos no exercício paciente e inacabado da escuta. mas esta audição a nós próprios não se faz sem coragem e sem esvaziamento.
não podemos estar à espera de condições ideais. eu acredito naquilo que o músico John Cage deixou escrito: em nenhuma parte do espaço ou do tempo existe isso a que, de forma idealizada, nós chamamos silêncio. à nossa volta tudo é som, por muito que tentemos encontrar um silêncio. e do mesmo modo se expressou Kafka falando da sua trincheira, a literatura: «nunca conseguimos estar suficientemente sozinhos quando escrevemos, até mesmo a noite nunca é noite o suficiente». aquilo a que chamamos silêncio só se torna real e efetivo através de um processo de despojamento interior, e de nenhuma outra maneira.
os padres do deserto ensinam-no, com uma sabedoria sempre calibrada de humor. como aparece nesta história o monge Arsénio? «a certa altura, o abba Arsérnio chegou a um canavial e os juncos eram agitados pelo vento. e o velho sábio perguntou aos irmãos : que rumorejar é este?, e eles responderam: são os juncos.
o velho sábio disse-lhes: na verdade, se um homem se sentar em silêncio e ouvir a voz de um pássaro, é porque não tinha mesmo silêncio no seu coração. quanto mais não será assim convosco, que ouvis os sons destes juncos?

o silêncio não é apenas exterior. é preciso ter «silêncio no seu coração». mas esse silêncio pede-nos, em cada dia, muita turbulência e empenho. diziam ainda os padres do deserto: aquele que se senta em solidão e está silencioso escapou a três guerras - ouvir, falar, ver. terá, contudo, de travar continuamente uma batalha contra uma coisa: o seu próprio coração.

faltam-nos hoje mestres de humanidade. faltam cartógrafos do coração humano, dos seus infindos e árduos caminhos que, por fim, se revelam extraordinariamente simples. falta-nos uma nova gramática que concilie os termos que a nossa cultura tem por inconciliáveis: razão e sensibilidade, eficácia e afetos, individualidade e compromisso social, gestão e compaixão(...)

josé tolentino mendonça, revista expresso, 19/jan'13


é isto.
até.

2 comentários:

  1. Nem fazes ideia de como estas palavras trouxeram reconforto e calma a este coração a mil... :) :) (sempre na hora certa*)

    beijinhos Nita*

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