sábado, 28 de abril de 2012

o vago calafrio



(...) a conversa deslizou, não sei como, para a voluptuosidade na arte.
E então a americana bizarra logo protestou:
- Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus amigos, a voluptuosidade é uma arte - e, talvez, a mais bela de todas. Porém, até hoje, raros a cultivaram nesse espírito. Venham cá, digam-me: fremir em espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de ânsia - não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los. E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos húmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irreais de admiráveis não altearia!… Tinha o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores, os aromas, os narcóticos e as sedas - tantos sensualismos novos ainda não explorados… Como eu me orgulharia de ser esse artista!… E sonho uma grande festa no meu palácio encantado, em que os maravilhasse de volúpia… em que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicolores - e que a vossa carne, então, sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons, penetrando-a a dimaná-los, a esvaí-los, a matá-los!… Pois nunca atentaram na estranha voluptuosidade do fogo, na perversidade da água, nos requintes viciosos da luz?.. Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual - mas de desejos espiritualizados de beleza - ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na água de um regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes eléctricas, luminosas… Meus amigos, creiam-me, não passam de uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam aparentar! Depois da ceia, é o espectáculo - o meu Triunfo! Quis condensar nele as minhas ideias sobre a voluptuosidade-arte. Luzes, corpos, aromas, o fogo e a água - tudo se reunirá numa orgia de carne espiritualizada em ouro! Porém nada valeu em face da última visão:
Raiaram mais densas as luzes, mais agudas e penetrantes, caindo agora, em jorros, do alto da cúpula - e o pano rasgou-se sobre um vago tempo asiático… Ao som de uma música pesada, rouca, longínqua - ela surgiu, a mulher fulva…
E começou dançando…
Envolvia-a uma túnica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente. Jóias fantásticas nas mãos; e os pés descalços, constelados…
Ai, como exprimir os seus passos silenciosos, húmidos, frios de cristal; o marulhar da sua carne ondeando; o álcool dos seus lábios que, num requinte, ela dourara - toda a harmonia esvaecida nos seus gestos; todo o horizonte difuso que o seu rodopiar suscitava, nevoadamente…Entretanto, ao fundo, numa aura misteriosa, o fogo ateara-se…
Vício a vício a túnica lhe ia resvalando, até que, num êxtase abafado, soçobrou a seus pés… Ah! nesse momento, em face à maravilha que nos varou, ninguém pôde conter um grito de assombro…
Quimérico e nu, o seu corpo subtilizado, erguia-se litúrgico entre mil cintilações irreais. Como os lábios, os bicos dos seios e o sexo estavam dourados - num ouro pálido, doentio. E toda ela serpenteava em misticismo escarlate a querer-se dar ao fogo…Mas o fogo repelia-a…Então, numa última perversidade, de novo tomou os véus e se ocultou, deixando apenas nu o sexo áureo - terrível flor de carne a estrebuchar agonias magentas…
Vencedora, tudo foi lume sobre ela…
E, outra vez desvendada - esbraseada e feroz, saltava agora por entre labaredas, rasgando-as: emaranhando, possuindo, todo o fogo bêbado que a cingia.
Mas finalmente, saciada após estranhas epilepsias, num salto prodigioso, como um meteoro - ruivo meteoro - ela veio tombar no lago que mil lâmpadas ocultas esbatiam de azul cendrado.
Então foi apoteose:
Toda a água azul, ao recebê-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada, ardida pela sua carne que o fogo penetrara… E numa ânsia de se extinguir, possessa, a fera nua mergulhou… Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao seu redor…
… Até que por fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre as águas douradas - tranquilas, mortas também…

a confissão de lúcio, mário de sá-carneiro

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