quarta-feira, 4 de abril de 2012

o tempo morto



Às vezes tenho a impressão de que os sítios de onde venho não existem. Ou melhor, existem quando lá estou mas, mal saio, tenho a sensação de eles já não estarem lá só porque eu não estou lá. E ando a praticar toda a minha rapidez para ver se consigo apanhar o espaço desprevenido, mas o espaço é muito atento. O tempo não, o tempo, às vezes, engana-se e anda mais devagar… que já tenho reparado, mas o espaço é mesmo inteligente. No outro dia fui da sala à cozinha e, quando parecia que estava completamente decidido a ficar pela cozinha, corri da forma mais inadvertida e espontânea que consegui de novo para a sala e, naquele momento, tive… juro que tive quase a sensação de que a mesa e as cadeiras ainda não estavam completamente refeitas do choque, não estavam completamente materializadas. E então fui até à porta que estava lá e gritei para as pessoas que não estavam lá… para mim… para virem ver a minha… julgo que… sensação de desmaterialização espontânea da minha sala-de-estar. Mas a única pessoa que consegui cativar para a minha jornada de luta contra o espaço foi o meu vizinho que estava bêbado e em roupa interior. E então eu e o meu vizinho, que se chama Joaquim e que não tinha nada para fazer naquela tarde a não ser estar bêbado e de roupa interior, passámos três horas a tentar apanhar o espaço desprevenido, mas ele não deixou. E nunca mais jurei que tive aquela sensação, mas o Joaquim teve-a, a sensação, disse que quando chegava aos sítios tudo estava branco… e que quando olhava para trás, de repente, o sítio de onde vinha tinha ido para o espaço porque o espaço não teve tempo... porque o tempo é incompetente e, às vezes, anda devagar e o Joaquim, por estar constantemente bêbado, adquiriu super-poderes e consegue ver sempre o que não está lá. Vou fazer como o Joaquim e afogar-me no fundo de uma garrafa de conhaque, como aquele barco que o meu avô guardava na biblioteca que se perdeu com a inundação. E bebo, e trago, e mais outro trago comigo para me ajudar, e cambaleio, e tropeço, e entorpeço mas o espaço está sempre lá, o cabrão está sempre lá e o tempo está feito com ele, abranda-me o relógio que tenho na cabeça para que eu não veja que isto é uma ilusão. É uma sensação de julgo que eterna e eu tento não julgar mas julgo muito… que acho que tenho a sensação que alguma coisa aqui não está bem… que este mundo tem alguma coisa por trás a mexer os cordelinhos, a meter uma cunhazita, a orquestrar-me a banda sonora das enxaquecas. (...)

joão negreiros

Sem comentários:

Enviar um comentário