quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
ar de graça
penso muitas vezes no bairro.
em como cada despedida é feita em determinada hora, quando a saída grita tão alto e nos deixa sem forças para mais nada a não ser aquela direcção.
existe nela sempre um regresso. porque nas memórias persistem as vozes daquela gente.
da vizinha que de manhã cedo me cumprimentava. debaixo de chuva ou de sol, ali estava ela, cotovelos apoiados na janela enquanto passeava a maggie, antes do trabalho. todos os dias perguntava como eu estava. e desejava os bons dias, à antiga. «continuação, menina».
o do 22, que tinha o pitbull que tentávamos evitar.
a dona do café que me guardava as cartas e entregava os censos e assava sardinhas enquanto conversávamos.
o paulo. que todos os dias vinha com uma história nova. a sofia, que vivia no limbo da violência, do criar dos filhos e do marido preso. a do largo, que vivia no medo de chegar a casa e dos gritos até anoitecer e o homem se cansar.
a barbuda e os concertos de trash metal até de madrugada.
o supermercado indiano e o vendedor, que não consigo achar igual.
os arraiais.
o mundo que se vivia naquelas calçadas enfiava-se a trancos e barrancos em mais um desalinho da cidade.
mas o que ali se aprendeu, o que se guardou como força que nos marca sem parar, pensar ou reter no ânimo momentâneo, essa a ideia vaga de que somos imortais.
ali, por momentos, seríamos capazes de tudo. passar e sobreviver. perdidos nas ruelas mais bonitas que algum dia vi. acordava nelas. dormia na penumbra do candeeiro amarelo que tremeluzia lá fora. vi as primeiras flores daquela árvore gigante ao centro do largo.
e agora já longe, volto ao bairro. volto a sentir as pedras por baixo dos pés que não param de caminhar.
seguro-me à inconstância da vida para alinhar o eixo desta terra por onde sonho.
cada regresso a casa é amar tudo outra vez. o suspenso renasce e revive o crescer por dentro.
nada voltará a ser como dantes, e o bairro sabe disso.
o paulo mostra-me o plano de requalificação, o largo vai ter laranjeiras a perder de vista. o orgulho e o brilho nos seus olhos faz-me estremecer.
volto ao bairro e ali consigo ver-me. ainda. sobe-se a escada com dificuldade. abre-se a porta de casa com alívio ao chegar. chega-se apenas para seguir andando. padecendo da saudade tão nossa. saber que podemos voltar e sorrir aos dias passados. saber que podemos voltar e seguir e todos estarão no lugar onde os deixámos. o pitbull. a vizinha de manhã. o paulo. a sofia. as cartas no café. até as ameaças disfarçadas de cuidados. até a marcha da mouraria que saiu em cortejo e escolta animada. tudo estará por ali outra vez.
nós é que não.
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